domingo, 5 de janeiro de 2014

Formação, Romance de. (4)



A trincheira precede o Campo de Concentração. Cônsul brasileiro em Hamburgo - cidade onde nasceu Hans Castorp - o médico João Guimarães Rosa assiste in loco o teatro de guerra da década de 40. De volta ao Brasil, publica em 1946 seu primeiro livro, Sagarana, escrito na década de 30.  Fica dez anos sem publicar. Eis então que entrega de uma só vez 1.420 páginas. O ano é 1956. A guerra terminou há 11 anos. Somente em 1965 é que Adorno vai proferir "Educação após Auschwitz”. Ao campo de concentração, Guimarães Rosa contrapõe o Campo Geral. 

Campo Geral é o primeiro poema do volume, depois desdobrado, intitulado ‘Corpo de Baile. Conta a estória de um certo Miguilim, que “morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, muito longe daqui, muito depois da Vereda do Frango d’Água, e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra”. Naquela outra trincheira do mundo.

O Corpo de Baile, sete poemas em prosa de mais de cem páginas cada, também desdobrados ao final do volume em “GERAIS - Os Romances” e em “PARÁBASE - Os Contos”, faz contraponto àquele outro volume para o qual não quis determinar o gênero. Grande Sertão: Veredas não tem capítulos. É uma narrativa, em primeira pessoa, que não se interrompe até o ponto final, sob o qual foi colocado o símbolo do infinito: a banda de Moebius. Riobaldo conta ao interlocutor o que é o Sertão. É o que está por dentro do Gerais: 

“O gerais corre em volta. Êsses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.”Dizem os universitários que a narrativa de Riobaldo é não-linear. Podemos dizer melhor: Riobaldo, na presença de seu paciente interlocutor, segue o fluxo – as veredas – da associação livre.Assim como na psicanálise a concentração da atenção não opera: é a atenção flutuante a atitude a que corresponde e que produz as veredas da livre associação.

Riobaldo narra. No fundo do sertão encontra, por mais de uma vez, o alemão Vupes, Wusp, Wupsis… representante comercial que está vendendo equipamentos agrícolas  para a modernização necessária da produção. 

Riobaldo é ao mesmo tempo o sujeito da estória que narra e um personagem da história que é narrada. Conforme a primeira frase de Tutaméia:

“A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História”

Três termos portanto: estória, história e História.

Em 1957 Lacan publica “A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud”. Propomos, sem mais: Grande Sertão atualiza o conceito de Romance de Formação. Pode-se lê-lo menos como a formação do caráter de Riobaldo – que, afinal de contas, parece estar definido, como Schiksal, desde o início – mas como narrativa de suas vicisstudes. Em outras palavras, como romance da formação social brasileira. Isso só é possível a partir do momento em que não é mais possível supor um fluxo de consciência sem quebras. O sertão é do tamanho do mundo. É nele que as determinações mundiais, históricas, se presentificam. 

À concertina que delimitaria o campo de concentração a psicanálise responde definindo seu campo: universitas literarum, o universo das letras. O sertão é do tamanho do mundo. É nele que as determinações mundiais, históricas, se presentificam. 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Seção de Recenseamento do Campo Freudiano

O Recenseamento do Campo Freudiano tem como propósito dar destino à instância superegóica, realizando sua absorção como censura crítica. Para além do princípio do prazer, é preciso demarcar a distância necessária (hiância) entre o 'fale o que lhe vier à cabeça', enunciação da regra fundamental, e o ato teórico, que impõe formas (éticas) às formulações e, ao mesmo tempo, sujeita o texto à crítica. A Verdrangung é, de fato, um operador fundamental. Tanto em "a verdade só se pode dizê-la pela metade" quanto nas próprias formações do inconsciente. Não existe sonho sem censura onírica. A ética da psicanálise compreende, na formação do analista, não a abolição mas, antes, a apropriação da censura.

Seção de Psicanálise Aplicada

A seção de psicanálise aplicada significa aplicação da psicanálise à clínica médica, como quem diz aplicação de insulfilm grátis. Nisto se revelam seus contornos, aqui se discute sua eficácia. Na medida mesma em que a psicanálise se constitui como avesso da clínica médica. Ela só pode se medir diferencialmente, em relação a uma outra terapêutica que compreenda em sua praxis a aplicação de critérios científicos. Aqui é a psicanálise mesma que atinge a compreensão da forma específica da sua eficácia. Aqui se recortam os elementos válidos de sua ética. Restaurando à dignidade clínica o estatuto do sujeito - paciente - analisando - sofredor.


Seçao de Psicanálise Pura

Na escola, a seção de psicanálise pura trata da psicanálise aplicada à própria psicanálise. Não discute critérios, mas organiza práticas. Práticas essas, necessariamente, da didática. Aqui os problemas são do Materialismo Histórico (Cf. Badiou e Althusser). Trata da crítica das condições concretas da formação, determina lacunas, aponta a necessidade fisiológica da entrada em supervisão.  Se articula portanto com o que há de mais externo à formação psicanalítica, ou seja: suas formas estabelecidas. Garante, portanto, o funcionamento propriamente analítico da transmissão. Se orienta em torno do conceito de transferência. Assegura a livre escolha - como quem diz livre associação - do analista e do supervisor. Orienta a formação, portanto, seguindo as linhas da livre associação e da atenção flutuante, as quais irão apontar os problemas fundamentais da psicanálise.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. 
A vida inteira que podia ter sido e que não foi. 
Tosse, tosse, tosse. 

Mandou chamar o médico: 
- Diga trinta e três. 
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três... 
- Respire. 

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. 
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? 

- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. 

Manuel Bandeira

Formação, Romance de (3)



A Montanha Mágica é o romance de formação de um mundo onde já existe o conceito do gênero "romance de formação". Podemos lê-lo como a crítica desse conceito. O ambiente é um sanatório de tuberculosos, onde chega Hans Castorp para alguns dias de visita ao primo tísico, Joachim. Instalado, Castorp vai aprender que lá o tempo não se conta em horas, dias ou semanas. O mês é a unidade de tempo. 

Castorp tem cultura. Leu os clássicos na escola, sabe de arte e se emociona com música. No entanto, é ao adentrar a 'Montanha Mágica' que rapidamente vai dar-se conta da inutilidade dessa cultura – já apropriada pela burguesia – para a  vida. A vida de Castorp, foi, ate então, absolutamente plana. Nada lhe interessa especialmente, e até mesmo sua condição de órfão precoce ele aceita com uma resignação que lhe parece informar de que da vida nada se pode esperar para além do que a cultura oferece. A cultura tornou-se mortificação. O tempo foi apropriado pelo relógio. A utilidade impôs-se como o valor racional. É na Montanha pela qual sobem e descem os doentes do fôlego - e muitos sobem para não voltar - que Castorp vai querer sorver da vida outros extratos. Talvez, o que a Montanha Mágica ofereça como formação seja apenas o pneumotórax: um procedimento radicalmente desesperançado que é apenas capaz de socorrer o sujeito numa situação aguda em que se tornou inviável respirar. Não se promete ali uma cura. A cultura não salvará da morte, nem garantirá a vida.  A vida durará tanto quanto os efeitos de um pneumotórax. 


O livro é publicado em 1924, a ação termina em 1914. Entre esses dois momentos Freud pôde conceber a pulsão de morte. Em 1933 Benjamin vai atentar para o fato de que os soldados retornaram das trincheiras sem nenhuma experiência para narrar. Hans Castorp termina o Bildungsroman numa trincheira, cantarolando uma Lieder de Schubert.